“Erasto ficou em Corinto, e deixei Trófimo doente em Mileto”
2 Timóteo 4:20
Estas estão entre as últimas palavras do apóstolo Paulo,
encontradas nos versos finais da última de suas epístolas. O capítulo nos
lembra da despedida de um homem moribundo feita ao seu amigo mais querido, em
que, perto da morte, traz a mente os companheiros de sua vida. Em meio a suas
lembranças afetuosas, encontramos Paulo recordando-se de Trófimo, com quem
dividiu os perigos dos rios e as ameaças dos ladrões que, sem interrupção,
acompanharam a carreira do apóstolo. Paulo havia deixado o bom homem doente em
Mileto e como Timóteo estava em Éfeso, encontrando-se assim a uma curta
distância, não havia necessidade de sugerir-lhe que o visitasse, pois ele
certamente o faria.
O amor de Jesus opera grande ternura e união nos corações
dos Seus discípulos. A superabundância da maravilhosa alma do nosso Senhor
encheu todos os Seus seguidores verdadeiros com afeto: como Jesus amou a Paulo,
Paulo amou a Timóteo e Timóteo sem nenhuma dúvida amou a Trófimo. Deste amor
surge o sentimento de comunhão, de tal forma que, na simpatia que partilham,
dividem as alegrias e as tristezas uns dos outros. Quando um membro se
regozija, todo o corpo se regojiza, e quando um membro sofre, todo o corpo
sofre com ele.
Trófimo estava doente e Paulo não podia se esquecer dele,
embora ele próprio estivesse esperando morrer uma morte de mártir em algumas
semanas! Tampouco queria que Timóteo ignorasse o fato, tanto que, por duas
vezes, dentro de um curto trecho de versos, Paulo o apressa para vir a Roma,
dizendo: “Procura vir antes até mim”.
Se Timóteo não podia visitar pessoalmente o amigo doente,
mesmo assim era bom que soubesse de sua aflição, para que, então, se lembrasse
dele em suas orações. “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de
Deus”. (1ºJoão 4:7) Vamos nos lembrar daqueles que são um conosco em Cristo e,
especialmente, vamos levar em nossos corações todos os que estão sendo
afligidos em mente, corpo, ou em suas vidas materiais.
Se nós tivermos que deixar Trófimo em Mileto, ou em
Brighton[1], ou em Ventnor[2], deixemos o amor do nosso coração com ele. E se
ouvirmos que outro Trófimo está caído doente perto de nossa casa, vamos aceitar
isso como motivo suficiente para ajudarmos o amigo aflito. Que uma simpatia
santa permeie todas as nossas almas. Por mais ativos e zelosos que sejamos,
ainda não teremos atingido um caráter perfeito se não formos compassivos,
sensíveis e atenciosos com os que choram, pois esta é a mente de Cristo.
Bem simples é a afirmação do nosso texto, porém é encontrada
em um livro inspirado e, portanto, é mais do que uma nota comum em uma carta
qualquer. Outro verso do mesmo capítulo, “Quando vieres, traze a capa que
deixei em Trôade, na casa de Carpo, e os livros, principalmente os pergaminhos”
(1º Timéteo 4:13) foi considerado abaixo da dignidade da Inspiração, mas nós
não cremos assim[3]. O Deus que conta os cabelos da nossa cabeça pode muito bem
falar de Seu servo doente nas páginas do livro inspirado! Em vez de discussões
sobre a pequenez do fato registrado, vamos admirar “o amor do Espírito“, que,
enquanto levanta a Ezequiel e a Daniel acima das esferas e eleva a linguagem de
Davi e de Isaías ao campo supremo da poesia e da eloqüência, também se digna a
inspirar tal linha como esta: “Deixei Trófimo em Mileto doente“.
Podemos aprender mais alguma coisa desta linha de caligrafia
apostólica? Vamos descobrir. Se o mesmo Espírito divino que a inspirou brilhar
em cima dela, não devemos lê-la em vão!
I. Considerando o fato de que Paulo deixou Trófimo doente em
Mileto, aprendemos que ESTA É A VONTADE DE DEUS, QUE ALGUNS HOMENS BONS NÃO
GOZEM DE BOA SAÚDE. Qualquer que fosse a doença que afetou a Trófimo, Paulo
certamente poderia tê-lo curado já que o Espírito Divino tinha permitido o uso
de seus poderes miraculosos para esse fim. Ele fez Êutico acordar da morte
(Atos 20:9) e devolveu a utilidade aos membros inferiores do aleijado em
Listra. (Atos 14:8-10) Temos, portanto, plena certeza de que se Deus tivesse
permitido o apóstolo a usar seu poder de cura, Trófimo teria deixado sua cama e
continuado sua viagem para Roma. No entanto, esta não foi a vontade de Deus. A
videira que produz bons frutos deve ser podada, e Trófimo precisava sofrer:
havia um propósito que devia ser cumprido através de sua fraqueza e que não
poderia ser alcançado em sua saúde. Restauração instantânea poderia ter sido
dada, mas foi suspensa sob direção divina.
Esta doutrina nos afasta do conceito tolo de casualidade.
Nós não somos feridos por flechas atiradas ao acaso, mas antes, sofremos dores
debaixo do determinante conselho do Céu! Uma mão dominante está presente em
toda parte, prevenindo ou permitindo o mal, e não deixa que nenhum dardo de
enfermidade lançado pelo arco da morte voe furtivamente. Se alguém deveria
ficar doente, foi a sábia Providência que selecionou Trófimo, pois era melhor
que ele estivesse mal de saúde em vez de Tito, Tíquico ou Timóteo. Foi bom
também que ele adoecesse em Mileto, próximo à sua cidade natal, Éfeso. Nem
sempre conseguimos ver a mão de Deus, mas podemos ter certeza de que ela sempre
está lá. Se nem um pardal cai em terra sem a ordem de nosso Pai, certamente
nenhuma criança da família divina é derrubada se não for esta a Sua santa
vontade! A sorte é uma idéia pagã que não pode sobreviver frente a um Deus
Onipresente, Onisciente e Onipotente! Que esta palavra, “sorte”, seja expulsa
de toda mente cristã! É uma desonra para o Senhor e doloroso para nós mesmos!
Esta doutrina também nos liberta da angústia de pensarmos
que os homens sofrem por causa de seus pecados pessoais. Muitas doenças são
resultado direto da intemperança, ou de algum outro tipo de perversidade; mas
aqui estamos falando de um irmão valoroso, aprovado, que está acamado e é
deixado na estrada com um mal da qual ele não é culpado em nenhum grau. É muito
comum hoje em dia homens de espírito impiedoso e cruel atribuírem doenças,
inclusive contra aqueles que são verdadeiros filhos de Deus, à falhas em seu
estilo de vida. Perguntamos-nos como eles gostariam de ser tratados no que diz
respeito a este assunto se fossem eles que estivessem sofrendo e pudessem lavar
as mãos na água da inocência em relação às suas vidas diárias? No dia de nosso
Senhor eles Lhe disseram: “Senhor, aquele que tu amas está doente” (João 11:3).
Mas Salomão, muito antes, escreveu: “Porque o Senhor repreende aquele a quem
ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem“(Provérbios 3:12). Este foi um
discurso muito melhor, mais humano e mais verdadeiro do que a filosofia
congelada dos tempos modernos, que encerra a doença de cada homem na sua
própria violação da lei natural e que, em vez de derramar o bálsamo da
consolação, espalha o ácido sulfúrico da caluniosa insinuação!
Deixe que o aflito examine a si mesmo para ver se a vara não
foi enviada para corrigir nele algum mal secreto e que ele considere
atentamente o que deve mudar; porém longe de nós ficarmos ao seu lado, como
juízes ou lictores[4], olhando para o nosso amigo como um infrator, bem como um
sofredor! Tal brutalidade pode ser deixada aos filósofos, mas não para os
filhos de Deus!
Não podemos pensar que Trófimo é inferior porque ele está
doente em Mileto. Ele provavelmente é um homem muito melhor do que qualquer um
de nós e talvez por isso mesmo passe por mais provações. Há ouro nele, o que justifica
colocá-lo no cadinho[5]; ele produz frutos tão preciosos que vale a poda; ele é
um diamante de água tão pura que fará valer o trabalho de lapidação.
Isto pode não ser a realidade em muitos de nós e por isso
escapamos das Suas provas mais pungentes. Ouçamos então Tiago, que disse, “Eis
que temos por bem-aventurados os que sofreram” (Tiago 5:11), e Davi, que
escreveu, ” Bem-aventurado é o homem a quem tu castigas, ó SENHOR, e a quem
ensinas a tua lei“(Salmo 94:12). O que dizem as Escrituras? “Porque o Senhor
corrige o que ama, E açoita a qualquer que recebe por filho. Se suportais a
correção, Deus vos trata como filhos; porque, que filho há a quem o pai não
corrija?” (Hebreus 12:6-7) Lázaro de Betânia, Dorcas, Epafrodito e Trófimo são
alguns membros deste grande exército de pessoas doentes a quem o Senhor ama em
suas enfermidades, para quem foi escrita a promessa: “O Senhor o sustentará no
leito da enfermidade; tu lhe amaciarás a cama na sua doença” (Salmo 41:3).
II. Temos apenas força e experiência para dar simples
sugestões; também notamos que, em segundo lugar, HOMENS BONS PODEM SER DEIXADOS
PARA TRÁS QUANDO PARECEM SER MAIS NECESSÁRIOS, exatamente como aconteceu com
Trófimo quando o apóstolo já envelhecido requereu sua ajuda. Paulo precisava
desesperadamente dele quando foi obrigado a deixá-lo em Mileto; tanto que ele
escreve tristemente, “Porque Demas me desamparou, amando o presente século, e
foi para Tessalônica, Crescente para Galácia, Tito para Dalmácia. Só Lucas está
comigo” (1º Timóteo 4:10-11). “Também enviei Tíquico a Éfeso” (v.12). Quão
feliz Paulo teria ficado com a companhia de Trófimo, considerando como ele pede
a Timóteo que venha o mais rápido possível e traga Marcos, cujo serviço era
muito necessário a Paulo.
No entanto, nem mesmo por causa de Paulo, Trófimo teve a
saúde restaurada milagrosamente! Seu Senhor entendeu que era necessário que ele
sentisse o calor do forno, por isso Trófimo foi lançado ao cadinho. Pensamos
que a Igreja não pode dispensar o ministro que é reto, o missionário incansável,
o diácono fiel, o professor dedicado, mas Deus não pensa assim! Ninguém é
indispensável na casa de Deus! Ele pode fazer seu próprio trabalho, não só sem
Trófimo, mas mesmo sem Paulo! Sim, podemos ir mais longe; às vezes ocorre de o
trabalho do Senhor ser vivificado por meio do falecimento daquele de quem Ele
parecia depender!
Quando uma árvore grande e exuberante é cortada, muitas
árvores menores que estavam ao lado, pequenas e atrofiadas, de repente começam
a crescer vigorosamente; da mesma maneira, um bom homem pode fazer muito, mas
quando ele é removido de seu meio, os outros se revelam capazes de fazer mais.
Doenças temporárias nos grandes trabalhadores podem trazer para frente aqueles
que, por pura modéstia, mantiveram-se na retaguarda; e o resultado pode ser um
grande ganho.
O pobre Trófimo tinha sido, em seus dias de saúde, o
responsável por, sem querer, colocar Paulo em um mundo de problemas, pois lemos
em Atos 21: 27 que os judeus criaram um tumulto, porque achavam que Paulo havia
levado Trófimo para dentro do templo para profanação. Agora, que ele poderia
ter sido útil, ficou doente, e, sem dúvida, a doença foi uma grande tristeza
para Trófimo. Mas como foi com ele, deve ser conosco: não há alternativa senão
submeter-se à mão de Deus e ter a certeza de que o Senhor está sempre certo.
Por que não nos rendemos de uma vez? Por que mordemos o
freio e batemos as patas no chão, inquietos por estarmos na estrada? Se o
Senhor nos manda ficar parados, não podemos nos aquietar? Mentes ativas tendem a
tornar-se espíritos inquietos, sob o peso da mão que restringe; a energia logo
se azeda e se transforma em rebelião, e brigamos com Deus porque não temos
permissão para glorificá-Lo da nossa maneira; é uma guerra sem sentido que no
fundo denuncia que temos vontade própria, vontade esta que só se submete a Deus
com a condição de ser satisfeita.
Irmãos e irmãs, quem escreve estas linhas sabe o que escreve
porque este é o veredicto da sua experiência; a obra de Deus precisa de nós
muito menos do que imaginamos e Deus nos quer cientes deste fato, pois Ele não
dará a Sua glória a instrumentos humanos assim como Ele não irá permitir que o
seu louvor seja dado a imagens esculpidas!
III. Nosso texto nos mostra claramente que os homens bons
DESEJAM QUE A OBRA DO SENHOR PROSSIGA SEM SE IMPORTAREM O QUE VAI ACONTECER COM
ELES ENQUANTO DEUS TRABALHA.
Paulo não abandonou Trófimo, mas o deixou porque um chamado
maior o convocou a ir até Roma. Podemos ter certeza de que Trófimo não queria
atrasar o grande apóstolo. Estava, inclusive, feliz em ficar. Certamente, ambos
sentiam a separação, mas como verdadeiros soldados de Cristo, suportaram a dor
e, por um tempo, abriram mão da companhia um do outro em prol da causa.
Seria uma grande tristeza para um trabalhador honesto saber
que qualquer operário da mesma empresa diminuiu seu ritmo de trabalho por causa
dele. O doente em um exército em campo é necessariamente um fardo, porém não no
exército do Rei dos reis!
A doença espiritual é um incômodo doloroso, mas a doença do
corpo não deve atrasar o anfitrião. Se não podemos pregar podemos orar. Se uma
obra está fora do nosso alcance, nós podemos tentar outra, e se não podemos
fazer nada, a nossa incapacidade deve servir como uma chamada para que os
funcionários úteis trabalhem com mais vigor! Trófimo está doente, então deixe
Timóteo ser o mais produtivo! Trófimo não pode apoiar o apóstolo, então que
Timóteo se esforce mais para vir antes do inverno! Assim, atuando como um
incentivo, a falta de serviço de um homem pode produzir dez vezes mais em
outros homens que são chamados para um esforço extra.
Irmãos, será um doce alívio para as dores de um pastor
doente ver cada um de vocês empenhados na obra. Seu descanso forçado será mais
suportável se ele souber que a Igreja de Deus não está sendo afetada por sua
inatividade. E sua mente e espírito colaborarão para a saúde do seu corpo se
ele contemplar o fruto do Espírito de Deus em todos vocês, mantendo-os fiéis e
zelosos. Vocês o farão, pela glória de Jesus?
Breve sermão escrito do leito de enfermo
Por Charles Haddon Spurgeon
FONTE:Traduzido do espanhol El Enfermo Que Se Tuvo Que
Quedar, tradução de Allan Román, com autorização e permissão deste para o
português para o Projeto, de http://www.spurgeon.com.mx/
Todo direito de tradução protegido por lei internacional de
domínio público
Sermão nº 1452—Volume 25 do Metropolitan Tabernacle Pulpit
Tradução: Gabriela Brandalise
Revisão: Armando Marcos Pinto
http://personagembiblico.blogspot.com.br/2015/10/trofimo-o-doente-que-foi-deixado-para.html
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