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Sidnei Moura
O contexto da Tragédia da Guanabara*, como ficou conhecida
mais tarde, ocorrida em 9 de fevereiro de 1558, teve como cenário a França
Antártica, uma colônia criada na baía de Guanabara, no estado do Rio de
Janeiro, em novembro de 1555, pelo militar Nicolas Durand de Villegaignon.
Desejoso por colonos com valores mais sólidos, o comandante escreveu à Igreja
Reformada em Genebra, liderada por João Calvino, pedindo o envio de pessoas de
bem para o auxiliarem no trabalho. Em resposta, a igreja mandou um grupo de
quatorze pessoas, entre as quais dois pastores. O pequeno contingente
desembarcou no Rio de Janeiro no dia 10 de março de 1557, ocasião em que foi
realizado o primeiro culto protestante no Brasil, e provavelmente das Américas.
No início, Villegaignon que era descendente de uma
importante família católica, mostrou-se simpático aos protestantes
recém-chegados. Na ocasião da celebração da primeira Santa Ceia em terras
brasileiras em 21 de março de 1557, chegou a confessar publicamente a sua fé na
doutrina reformada Calvinista, todavia, logo começou a divergir dos reformados
em relação a singela celebração da Ceia do Senhor e a outras diversas questões
doutrinárias.
Segundo relatos históricos da época, Villegaignon tornou-se
um tirano cruel. Passou a obrigar seus trabalhadores a efetuarem trabalhos
forçados, privando-os de alimentação, descanso e vestuário adequados. Muitos de
seus mordomos foram consumidos pela fome e doenças por sua negligência e
omissão.
No final de outubro, Villegaignon expulsou os protestantes
da pequena ilha para o continente devido aos constantes conflitos motivados
pela questão doutrinária e teológica dos calvinistas, que ele passou a
rejeitar. Impossibilitados de dar continuidade ao seu trabalho, no início de
1558, eles decidiram regressar à pátria. Todavia, diante das condições
precárias da embarcação, cinco dos calvinistas decidiram voltar à terra firme.
Eram eles Jacques Le Balleur, Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre
Bourdon e André la Fon. Segundo informações, Balleur conseguiu fugir da ilha,
no entanto os demais foram até a presença de Villegaignon para pedir-lhe que os
recebesse novamente.
Acusados pelo comandante de serem traidores e espiões, os
cristãos calvinistas foram açoitados e encarcerados em uma cela estreita, escura
e com cadeias muito pesadas afixadas em seus pés. Villegaignon possuía diversos
instrumentos de tortura que utilizava para castigar seus mordomos escravos e
para afugentar os selvagens daquela região. Ele planejava como executá-los, e
por estar tomado de grande preocupação de como fazê-lo, constantemente visitava
a cela onde os calvinistas estavam presos, pois a sua tirania tirava até mesmo
a confiança que tinha em seus próprios mordomos, os quais colocou para fazer
escolta dos presos naquela cela. Não se conformava com a atitude dos
protestantes, pois apesar de estarem cientes de que poderiam a qualquer momento
ser executados, alegravam-se em Deus, e passavam o dia e a noite cantando
louvores, recitando salmos e orando a Deus.
Por haver se declarado inimigo dos cristãos calvinistas, e
sabendo que poderia agradar a corte com a morte dos reformados, resolveu
interrogá-los sobre a fé reformada, a fim de condená-los por heresia. Foi
quando formulou um questionário teológico, e lhes enviou a fim de respondê-lo,
dando um prazo de apenas 12 horas para apresentarem as suas posições
doutrinárias. Jean Du Bourdel foi escolhido para redigir o documento, que mais
tarde ficou conhecida como a Declaração de Fé de Guanabara, a primeira
declaração de fé das Américas. Era o mais velho dentre seus amigos, tinha
profundo conhecimento bíblico, teológico, da história da igreja e da fé
reformada.
Enquanto escrevia, Bourdel encorajava seus amigos a
permanecerem inabaláveis contra as afrontas do diabo, da carne e do mundo, que
tentavam através de toda sorte de artimanhas levá-los a negar a fé em Cristo.
Ao concluir a declaração, a mesma foi lida pelos huguenotes (nomenclatura dada
aos cristãos protestantes calvinistas nos séculos XVI e XVII por catolicos
franceses após o massacre em Vassy) e assinada pelos mesmos, e encaminhada a
Villegaignon, que ao recebê-la indignou-se sobremaneira, mandando chamar um
após outro a fim de confirmar o escrito e executá-los de forma sumária. Ao
chegar ao conhecimento do povo as intenções de Villegaignon, alguns tentaram
fazer os calvinistas desistirem da fé, o que levou Bourdel a fazer o seguinte
pronunciamento:
“Meus irmãos, vejo que Satanás se esforça por todos os meios
para nos impedir de, resolutamente, defendermos hoje a causa de Cristo Jesus
Senhor nosso, e que alguns de nos revelam uma timidez fora do razoável,
equivalente mesmo a uma duvida acerca do socorro e favor do nosso bom Deus, em
cujas mãos, sabemos, estão nossas vidas, que ninguém nos poderá tirar sem as
determinações dos seus sábios conselhos. Ora, eu vos peço que comigo
considereis o modo e o motivo por que viemos a este pais: Quem nos moveu á
travessia do oceano numa extensão de duas mil léguas? Quem nos preservou de
tantos perigos? Acaso não foi aquele que tudo governa, que dirige todas as
coisas pela sua bondade infinita, que ampara os seus por meios admiráveis? É
certo que contra nós militam três inimigos poderosos : – o Mundo, o Diabo e a
Carne, e que por nós mesmos não podemos resistir-lhes. Mas, si acorrermos ao
Senhor Jesus, que os venceu por nós, ele nos assistirá consoante a sua
promessa, que sempre cumpre, por isso que é fiel e Todo-Poderoso. Apeguemo-nos
a ele, e nele inteiramente repousemos. Coragem, pois, meus irmãos! Que os
enganos, que as crueldades, que as riquezas deste mundo não nos embaracem de
irmos a Cristo!”
A declaração de Fé
A confissão, escrita originalmente em latim, tem a forma de
um credo, pois a maior parte dos parágrafos começa com a palavra “cremos”.
Todavia, sua extensão e variedade de temas a coloca na categoria das confissões
de fé, comuns na época da Reforma. A seção introdutória faz uma bela aplicação
do texto de 1 Pedro 3.15. Os dezessete parágrafos de diferentes tamanhos tratam
de seis questões principais: (a) 1-4: a doutrina da Trindade e, em especial, a
pessoa de Cristo, com as suas naturezas divina e humana; (b) 5-9: a doutrina
dos sacramentos, sendo a Ceia tratada em quatro artigos e o batismo em um; (c)
10: o livre arbítrio; (d) 11-12: a autoridade dos ministros para perdoar
pecados e impor as mãos; (e) 13-15: divórcio, casamento dos religiosos e votos
de castidade; (f) 16-17: intercessão dos santos e orações pelos mortos. Você
pode ler a integra da Declaração clicando aqui
A execução dos huguenotes
Bourdel foi o primeiro a ser chamado a presença de
Villegaignon para declarar a sua fé. Após confirmar o que havia escrito, foi
fortemente espancado e condenado a morte por estrangulamento, asfixia e
afogamento. Um dos pajens de Villegaignon foi designado para fazer a execução.
Bourdel foi levado a um rochedo alto, e ali foi estrangulado, asfixiado e
jogado nas águas. Enquanto seu antagonista o executava, Bourdel orava
implorando a Deus perdão pelos seus pecados e entregando seu espírito a Deus.
Assim também aconteceu com Verneuil e Bourdon. La Fon, vacilando, se retratou
da declaração de fé, e por ser o único alfaiate daquela localidade sua
retratação foi aceita por Villegaignon. Balleur, que havia conseguido fugir foi
mais tarde capturado, e acabou por ser executado depois no Rio de Janeiro.
*457 anos depois – uma franca reflexão
O contexto histórico em que o primeiro martírio de cristãos em terras
brasileiras ocorreu completou *457 anos. É interessante notar que a perseguição
religiosa aos cristãos foi algo rotineiro e em alguns lugares devastador, porém
não foi suficiente para calar o evangelho de Cristo. É importante lembrar que o
próprio apóstolo Paulo foi enfático ao afirmar que embora ele estivesse preso
por diversas vezes, a palavra de Deus não estava. Avaliando o percurso da
igreja primitiva na conquista de novas almas para o reino de Deus,
constataremos que as perseguições aos cristãos apenas contribuíram para o
crescimento do evangelho, fortalecendo o dinamismo da estrutura da igreja como
organismo vivo em seu alcance a povos distantes.
Hoje, somos mais de 40 milhões de protestantes no Brasil.
Temos igrejas de grande porte, enviamos constantemente missionários para
diversas regiões do planeta e contamos com uma estrutura inimaginável nos
tempos dos pioneiros. Porém estamos vivendo um período semelhante ao dos
pioneiros calvinistas: um momento de ataque a fé bíblica. E a pergunta que não
quer se calar é a seguinte: Será que estamos dispostos a defender a fé, que uma
vez foi nos entregue pelo próprio Senhor? Que o Senhor nos ajude a defender a
razão da nossa esperança, e a vivermos de acordo com seus divinos propósitos!
- Maiores informações sobre a Tragédia da Guanabara estão
disponíveis no livro “A Tragédia da Guanabara - A História dos Primeiros
Mártires do Cristianismo no Brasil” de Jean Crespin, editado pela CPAD e
disponível nas melhores livrarias do país.
Sidnei Moura é licenciado em Letras e professor de Língua
Portuguesa e literatura. É editor do blog Sidnei Moura, filiado à UBE - União
de Blogueiros Evangélicos, e reside em
São Carlos - SP
(* adaptação)
Fonte:http://www.ubeblogs.net/
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